quinta-feira, 12 de outubro de 2017

O Aluno que Conversava com Cães

Pois é... Dia 15 deste mês comemoramos (?) mais um dia dos Professores. O que há para comemorar a não ser a doação diária destes profissionais ao progresso do ser humano? É difícil se falar de algo quando se está completamente imerso nele. O ser humano é parcial na maioria das situações, mas não estou aqui para defender ou acusar nada ou ninguém (tão típico de todos nós). Isto tem sido feito extensivamente (e de forma infrutífera) na mídia. Feliz o governo que tem em seus mestres e educadores o alicerce de um futuro para seu povo.


Não por saudosismo, mas tentei me lembrar de quando a veia educadora resolveu inflamar em minha pessoa. Uma flebite que nunca me curei e que mantenho ativa, nunca por opção, mas sempre por amor. Costumo falar com as pessoas mais chegadas a mim que uma profissão deixa de exercer seu caráter obrigatório e funcional quando se transforma em hobby. E assim considero a minha atividade de educador. Nunca considerei a cátedra como uma profissão ou obrigação funcional, mas, principalmente, como um estilo de vida saudável (mesmo que isto seja uma utopia hoje). Cada ser humano utiliza o entorpecente que prefere: leitura, chocolate, drogas, bebidas, futebol, preguiça e outros mais. O meu principal sempre foi ensinar, passar ao outro um pouco da experiência que adquiri e que poderá leva-lo a patamares mais elevados.

Lembro-me de diversas situações em que minha flebite crônica se tornou ativa, pulsando forte e me levando a ter certeza que o caminho era aquele. Foram ocasiões em que vi, nos olhos de meus educandos, a gratidão, o conhecimento e a força de seguir em frente. Nada mais caro (e emocionante) para um educador que este tipo de comportamento.

Um exemplo marcante que tive foi um aluno ainda na época que estive na Escola de Veterinária da UFMG. Naquele tempo (estou falando de 1991-1992) iniciava oficialmente na carreira docente como professor substituto de Semiologia e Clínica Médica de Pequenos Animais. Havia um individuo que se destacava da turma, não pelo seu rendimento (sofrível, por sinal), mas pelo seu comportamento agressivo e intolerante. Seus colegas o evitavam e eu, no auge da minha imaturidade docente, acreditava que ele realmente não se dava para muito esforço. Ledo engano. Um dia, um pouco antes de uma aula prática de Semiologia ocorrida em um dos antigos anfiteatros do DCCV, surpreendi este aluno conversando com o cão (acho que era o “Ástor”, alma canina que já foi para o céu dos cães)! Fiquei na espreita, próximo à soleira, ouvindo o que ele dizia (coisa feia!), sem coragem de interrompê-lo. As poucas palavras que ouvi me emocionam até hoje. Em resumo, entre afagos e olhando para o animal, ele dizia para que ele não se preocupasse, pois ninguém iria machuca-lo. Aquilo foi um choque. Como um aluno tão distante da aula e de todos poderia ter aquele comportamento? Quando ele me viu, o desconcerto foi geral: meu e dele. Dei a respectiva aula, mas notei que o aluno não estava presente. Uma semana depois deste fato, este aluno entrou em minha sala e perguntou se eu teria um tempo para ele. Este é um dos momentos mais sublimes da arte de educar: o contato direto e o conversar/entender. Foi então que, entre uma voz embargada e falha, até um leve choro, este aluno praticamente me contou uma história que nunca poderia imaginar que haveria por ali. Não conseguia nem de longe entender a dor daquela pessoa ao passar pela situação descrita. Foi então que ele, em um gesto inusitado, estendeu a mão e pediu a minha compreensão, dizendo que tentaria melhorar.


Considero este um dos melhores aprendizados que tive em minha vida. Um ser humano que sofria e não tinha como externar. Sua revolta com os outros e com o ensino era um comportamento estereotipado, típico daqueles que recorrem aos inevitáveis mecanismos de fuga/esquiva. Conversamos por diversas vezes e nos tornamos amigos. Lembro-me da sua dedicação nas aulas seguintes, para espanto meu e dos colegas. Saí da UFMG e fui para a UFLA e perdemos contato.

Este é um dos sentidos de ensinar. Não apenas passar conhecimentos técnicos, mas também orientar condutas, dar exemplos de comportamentos sociais aceitáveis. Como ele, tenho outras dezenas de casos semelhantes e que considero sucessos em minha carreira. Isto me faz viver cada vez mais.

Ah, quanto ao aluno, eu o reencontrei quase uma década depois. Estava esta pobre carcaça tomando um preguiçoso sol em uma praia capixaba em um dos raros momentos de férias, quando uma figura, devidamente acompanhada de uma mulher e seu rebento, parou em minha frente e disse: “Professor, é o senhor mesmo?”. Não sabia se ele se referia ao envelhecimento progressivo que os catedráticos passam ou pelos trajes sumários de uma praia, tão diferentes da antiga vestimenta branca que usávamos diariamente na Escola. Olhei para ele e reconheci o aluno que conversava com cães. Ele me apresentou sua esposa e seu filho, e, em suma, disse estar terminando seu Doutoramento em Clínica Médica em uma Universidade Federal. Foi uma emoção muito grande, ainda mais debaixo daquele sol. Da mesma forma que chegou, saiu e nunca mais tive contato com ele (apesar das promessas de contato de ambas as partes).


O que parece apenas um relato emotivo e desconexo serve não apenas para reforçar meu furor pedagógico frente a situações tão alarmantes que acontecem hoje em dia, momentos em que o estudante acredita que o ensino é um produto e que ele está pagando por isso. Acabou-se a relação mútua entre educador/educando, dificultando o processo de ensino/aprendizado. Da minha parte eu lhe agradeço, aluno que conversa com cães, pois além de abastecer minha inabalável convicção de estar na função de educador, ainda foi um dos eventos catalizadores para que eu cursasse e tivesse a honra de me formar em psicologia. Obrigado a você e a todos que realmente compreenderam estes escritos, lendo com o coração e não com os olhos.

sábado, 30 de setembro de 2017

O Aluno-60

Antes de discernir sobre este tema, não quero que pensem que estou julgando ninguém individualmente. Discorro sobre uma fauna específica que frequenta o bioma das salas de aula universitárias. Porém, mesmo tentando acreditar que estou lidando com indivíduos teoricamente adultos e responsáveis pelos seus atos, suas ações são diferenciadas da média do grupo. Já tive diversos Alunos-60 que passaram pelas minhas disciplinas como tempestades, mas que, como toda tormenta, um dia se afasta, sobrevindo a bonança. Também não gostaria que o leitor visse estes escritos por um viés de choque de gerações, pois sabidamente é burrice uma comparação com qualquer das inúmeras denominações de gerações criadas para explicar este vazio universitário mental. Gerações possuem ambientes e momentos próprios, que são, por essência, incomparáveis.


Nestes quase 30 anos de docência (e levando em consideração, também, os inúmeros anos de janela durante minhas graduações), e ao considerar o aproveitamento dos discentes em minhas disciplinas, constatei que, por este prisma, estes alunos podem ser classificados em dois grandes grupos: os Alunos-60 e os demais. Pode parecer coisa de biólogo taxonomista querer classificar tudo que vê pela frente (ou de um psicólogo esquizofrênico precoce), mas se trata de uma constatação real. Pois bem, o que se aproxima do perfil do Aluno-60? Tentarei traçar este comportamento estereotipado correndo o risco de generalizações, o que é um erro grave, porém comum do ser humano. Também não estou assumindo uma avaliação psicológica acadêmica, pois não tenho instrumentos adequados para tal feito. Mas vamos lá...


O Aluno-60 é aquele indivíduo pouco participativo em atividades, apesar de contestar tudo o que é dado na disciplina. É um indivíduo fugidio e que só se manifesta perante situações específicas que o favoreçam. Seu comportamento agressivo frente às atividades avaliativas é patognomônico, pois, frente à sua incapacidade, o mesmo já se julga prejudicado em função de alguma tarefa que ele, por meio de sua imaginação egocêntrica e míope, pensa ter sido montada para desarticula-lo em sua caminhada acadêmica.

Neste ponto, quando se sente prejudicado (como em uma revisão de nota avaliativa), o Aluno-60 coloca em ação todo o seu ferramental de boatos, difamações e mexericos sobre seu professor, a avaliação e a própria disciplina, posicionando-se como a grande vítima do processo. Seu grau de vitimização é tão impressionante e vívido, que carrega outros colegas incautos em sua firme decisão de se mostrar pusilânime frente a estas situações. Sua opinião é mais importante e de caráter decisório final, não aceitando outras interpretações.


É muito fácil o reconhecimento destes representantes em uma turma. Um professor experimentado e calejado consegue, logo nas primeiras aulas, identificar um Aluno-60. E cabe especial atenção a este indivíduo, já que se trata de um ser em caminho progressivo para o autoenforcamento, já que eles mesmos colocam as cordas em seus pescoços logo no início da graduação, esperando apenas alguma situação (ou alguém) que chute o banquinho que, efemeramente, ainda o sustenta. O Aluno-60 é uma espécie de neoplasia maligna dentro de uma turma, pois ele está ali apenas para passar na disciplina, em nada contribuindo para o bem comum. É um embrião psicopático ainda quiescente. A consequência imediata e fatal da ação destes indivíduos é uma quebra da relação educador-educando, criando uma atmosfera insalubre e hostil para ambos. E como um câncer, seu poder metastático é alto e alcança a maior parte dos colegas, podendo espalhar a discórdia e o ressentimento no processo de ensino-aprendizado.


Fico pensando se o Aluno-60 estaria satisfeito com apenas 60% de realização em suas atividades extrauniversitárias. Para ser um pouco bizarro, fico pensando se este indivíduo se contenta em comer apenas 60% do que sua fome pede; será que ele nunca atingirá um orgasmo, já que sua potência sexual será de apenas 60%? O seu salário futuramente correspondera a 60% do que ele poderia cobrar? Será???

Cabe ao educador evitar confrontos nestas situações, pois, como dito, estes indivíduos aprendem (e se alimentam) com desavenças e dor (já que o prazer é transitório em suas ações). Infelizmente, o poder dissuasivo do Aluno-60 é alto, podendo contaminar àqueles que o rodeiam de forma muito rápida e eficiente. O educador deve se abster de discussões diretas, já que interjeições lógicas não alcançam a mente infantil e insana deste indivíduo. O que o Aluno-60 mais quer, além de passar na disciplina por qualquer estratégia (lícita ou ilícita), é discutir, criar confusão e semear a discórdia, achando campo fértil para isto caso encontre alguém que o abasteça. Seu rastro nesta caminhada é apavorante, mas de pouca importância para eles.

Uma das estratégias que adoto e aprendi ao longo do tempo foi direcionar a este representante da vasta fauna psicótica humana uma completa indiferença com relação aos seus comportamentos doentios. Vale para ele o que vale para o restante da turma: nem mais, nem menos. O Aluno-60 não encontrará em mim nenhuma lenha para queimar em sua fogueira de ódio e imaturidade. Assim, que ele se queime sozinho. Cedo ou tarde, como tenho constatado em casos como estes, vejo futuros profissionais imbecilizados, arrogantes e pouco capazes de exercer sua atividade. Sua fragilidade é inversamente proporcional à sua resiliência, revelando um indivíduo fraco e de difícil socialização.

Mas este é o preço que se paga por não se tentar entender e nem ouvir os outros. Se é que vale alguma sugestão (nunca dou conselhos, até mesmo pela inutilidade dos mesmos na maioria das situações), procure ajuda psicológica. Talvez seu distúrbio comportamental tenha controle e você possa viver a vida sem criticar os outros nem se sentir o último “Bis” da caixinha. Boa sorte para você, Aluno-60.