Pois é... Dia 15 deste mês comemoramos (?) mais um dia dos Professores.
O que há para comemorar a não ser a doação diária destes profissionais ao
progresso do ser humano? É difícil se falar de algo quando se está completamente
imerso nele. O ser humano é parcial na maioria das situações, mas não estou
aqui para defender ou acusar nada ou ninguém (tão típico de todos nós). Isto
tem sido feito extensivamente (e de forma infrutífera) na mídia. Feliz o governo
que tem em seus mestres e educadores o alicerce de um futuro para seu povo.
Não por saudosismo, mas tentei me lembrar de quando a veia educadora
resolveu inflamar em minha pessoa. Uma flebite que nunca me curei e que mantenho
ativa, nunca por opção, mas sempre por amor. Costumo falar com as pessoas mais
chegadas a mim que uma profissão deixa de exercer seu caráter obrigatório e funcional
quando se transforma em hobby. E assim considero a minha atividade de educador.
Nunca considerei a cátedra como uma profissão ou obrigação funcional, mas,
principalmente, como um estilo de vida saudável (mesmo que isto seja uma utopia
hoje). Cada ser humano utiliza o entorpecente que prefere: leitura, chocolate,
drogas, bebidas, futebol, preguiça e outros mais. O meu principal sempre foi
ensinar, passar ao outro um pouco da experiência que adquiri e que poderá
leva-lo a patamares mais elevados.
Lembro-me de diversas situações em que minha flebite crônica se tornou
ativa, pulsando forte e me levando a ter certeza que o caminho era aquele.
Foram ocasiões em que vi, nos olhos de meus educandos, a gratidão, o
conhecimento e a força de seguir em frente. Nada mais caro (e emocionante) para
um educador que este tipo de comportamento.
Um exemplo marcante que tive foi um aluno ainda na época que estive na
Escola de Veterinária da UFMG. Naquele tempo (estou falando de 1991-1992)
iniciava oficialmente na carreira docente como professor substituto de Semiologia
e Clínica Médica de Pequenos Animais. Havia um individuo que se destacava da
turma, não pelo seu rendimento (sofrível, por sinal), mas pelo seu
comportamento agressivo e intolerante. Seus colegas o evitavam e eu, no auge da
minha imaturidade docente, acreditava que ele realmente não se dava para muito
esforço. Ledo engano. Um dia, um pouco antes de uma aula prática de Semiologia
ocorrida em um dos antigos anfiteatros do DCCV, surpreendi este aluno
conversando com o cão (acho que era o “Ástor”, alma canina que já foi para o
céu dos cães)! Fiquei na espreita, próximo à soleira, ouvindo o que ele dizia
(coisa feia!), sem coragem de interrompê-lo. As poucas palavras que ouvi me
emocionam até hoje. Em resumo, entre afagos e olhando para o animal, ele dizia para
que ele não se preocupasse, pois ninguém iria machuca-lo. Aquilo foi um choque.
Como um aluno tão distante da aula e de todos poderia ter aquele comportamento?
Quando ele me viu, o desconcerto foi geral: meu e dele. Dei a respectiva aula,
mas notei que o aluno não estava presente. Uma semana depois deste fato, este
aluno entrou em minha sala e perguntou se eu teria um tempo para ele. Este é um
dos momentos mais sublimes da arte de educar: o contato direto e o conversar/entender.
Foi então que, entre uma voz embargada e falha, até um leve choro, este aluno
praticamente me contou uma história que nunca poderia imaginar que haveria por
ali. Não conseguia nem de longe entender a dor daquela pessoa ao passar pela
situação descrita. Foi então que ele, em um gesto inusitado, estendeu a mão e
pediu a minha compreensão, dizendo que tentaria melhorar.
Considero este um dos melhores aprendizados que tive em minha vida. Um
ser humano que sofria e não tinha como externar. Sua revolta com os outros e
com o ensino era um comportamento estereotipado, típico daqueles que recorrem
aos inevitáveis mecanismos de fuga/esquiva. Conversamos por diversas vezes e
nos tornamos amigos. Lembro-me da sua dedicação nas aulas seguintes, para espanto
meu e dos colegas. Saí da UFMG e fui para a UFLA e perdemos contato.
Este é um dos sentidos de ensinar. Não apenas passar conhecimentos
técnicos, mas também orientar condutas, dar exemplos de comportamentos sociais
aceitáveis. Como ele, tenho outras dezenas de casos semelhantes e que considero
sucessos em minha carreira. Isto me faz viver cada vez mais.
Ah, quanto ao aluno, eu o reencontrei quase uma década depois. Estava
esta pobre carcaça tomando um preguiçoso sol em uma praia capixaba em um dos
raros momentos de férias, quando uma figura, devidamente acompanhada de uma
mulher e seu rebento, parou em minha frente e disse: “Professor, é o senhor
mesmo?”. Não sabia se ele se referia ao envelhecimento progressivo que os catedráticos
passam ou pelos trajes sumários de uma praia, tão diferentes da antiga
vestimenta branca que usávamos diariamente na Escola. Olhei para ele e
reconheci o aluno que conversava com cães. Ele me apresentou sua esposa e seu
filho, e, em suma, disse estar terminando seu Doutoramento em Clínica Médica em
uma Universidade Federal. Foi uma emoção muito grande, ainda mais debaixo
daquele sol. Da mesma forma que chegou, saiu e nunca mais tive contato com ele
(apesar das promessas de contato de ambas as partes).
O que parece apenas um relato emotivo e desconexo serve não apenas para
reforçar meu furor pedagógico frente a situações tão alarmantes que acontecem
hoje em dia, momentos em que o estudante acredita que o ensino é um produto e
que ele está pagando por isso. Acabou-se a relação mútua entre
educador/educando, dificultando o processo de ensino/aprendizado. Da minha parte
eu lhe agradeço, aluno que conversa com cães, pois além de abastecer minha inabalável
convicção de estar na função de educador, ainda foi um dos eventos
catalizadores para que eu cursasse e tivesse a honra de me formar em
psicologia. Obrigado a você e a todos que realmente compreenderam estes
escritos, lendo com o coração e não com os olhos.